Em 'O Agente Secreto', Recife de 1977 é cenário de afetos e paranoias
Wagner Moura volta às raízes brasileiras em thriller vigorosamente pernambucano que usa clima da ditadura como pano de fundo das tensões do país
André Guerra - Enviado especial
Publicado: 22/05/2025 às 00:00

Wagner Moura em cena de 'O Agente Secreto' (Victor Juca)
Apesar do longo período de gestação, O Agente Secreto já nasceu deitado em berço esplêndido. O novo filme de Kleber Mendonça Filho (seu quarto longa de ficção, após O Som ao Redor, Aquarius e Bacurau) não apenas teve o prestígio de estrear no Festival de Cannes, em competição pela Palma de Ouro, como dá de presente a Wagner Moura, um dos mais célebres atores brasileiros, a oportunidade de protagonizar um grande projeto autoral falado em português após uma década trabalhando apenas em estreladas produções estrangeiras.
O importante é que este projeto, escrito pelo cineasta pernambucano por quase cinco anos, é o melhor dos mundos tanto para o realizador quanto para o astro, mas, principalmente, para o espectador do Recife, que, após observar com a transformação de ruas em cenários de época, poderá assistir na tela grande o impressionante resultado visual que combina a precisão da reconstituição dos anos 1970 com um clima inequívoco de sonho (e de pesadelo).
O afeto por cada canto filmado no Recife continua uma marca registrada de Kleber, que declaradamente usa como alicerce para montar seu complexo retrato do país uma coleção de memórias muito vivas de pessoas, objetos, espaços, músicas e fotografias, costurando-os através do cinema de gênero (neste caso, ainda que de maneira tangencial, o thriller político).
Na intrincada e enigmática trama de O Agente Secreto, que o diretor/roteirista manteve em segredo pelo máximo de tempo que pôde, Wagner Moura vive o discreto professor universitário Marcelo, que chega de ao Recife em 1977, em um fusca amarelo, para se reentrar com o filho pequeno, que ficou morando com os avós maternos após o falecimento da mãe. Conseguindo um trabalho temporário em uma casa de registro de identidade, o protagonista gradualmente percebe que pode estar correndo perigo de vida e precisa se unir ao seleto grupo de pessoas em que pode confiar.
Apesar do período histórico ser essencial nos desdobramentos da narrativa, O Agente Secreto utiliza a ditadura militar no Brasil mais como pano de fundo implícito e atmosfera de paranoia do que como um assunto, mesmo porque, ao contrário de um trabalho como Ainda Estou Aqui, vencedor do último Oscar de Melhor Filme Internacional, a obra de Kleber não se baseia em um caso verídico em particular e nem sequer menciona o regime ao longo de suas quase 2h40 de duração.
A vantagem que a opção pela assimilação do contexto em detrimento da pedagogia temática dá a O Agente Secreto é estupenda. Em primeiro lugar, porque livra o filme da limitação de demarcar seus acontecimentos a partir de uma linha histórica mestra que será, em última instância, a métrica pela qual muitos espectadores vão avaliar o projeto. Em segundo, e mais crucial, permite que o diretor tenha a liberdade para fazer uma de suas marcas registradas: tomar o tempo e a atenção que julga necessário na introdução de cada um de seus marcantes atores e situações.
Apesar da centralização no ponto de vista de Marcelo, personagem de Wagner, os coadjuvantes têm frequentemente ainda mais destaque do que ele quando aparecem — algo bastante comum, seja ou não uma referência direta, nos thrillers políticos que Alfred Hithcock, mestre do suspense, fez entre o final dos anos 1960 e começo dos anos 1970, como Cortina Rasgada e Topázio.
A pernambucana Hermila Guedes é uma das primeiras a dar as caras em um elenco interregional que inclui ainda marcantes participações de Alice Carvalho, Maria Fernanda Candido, Carlos Francisco, Gabriel Leone, Suzy Lopes, Buda Lira, Luciano Chirolli, Roberto Diogenes e ainda a atriz portuguesa Isabél Zuaa. Ninguém, porém, rouba a bola da cena e sai correndo com ela com tanto brilho quanto Tânia Maria, descoberta por Kleber em Bacurau. A atriz, em seu primeiro grande papel, contracena com Wagner Moura e dá vida a longos diálogos com uma inteligência e desenvoltura que, na exibição no Festival de Cannes, se tornou um dos mais comentados assuntos do filme, arrancando várias risadas da plateia internacional.
O cuidado em introduzir a plateia a cada um dos núcleos e revelar em detalhes cenas dentro de cenas, no entanto, não é para O Agente Secreto uma ferramenta de autocondescendência, uma forma bairrista de chamar antenção para seus regionalismos, mas, pelo contrário: uma estratégia de construção de afeto, de legitimação da memória e de universalização do drama. Mesmo que várias minúcias do texto e do humor sonoro sejam assimiladas em maior intensidade pelo público nativo da capital pernambucana, Kleber tem a notória capacidade de estabelecer códigos de gêneros clássicos e adaptá-los ao seu próprio cinema.
Ao retratar multi-camadas do Recife com a rara lente Panavision, utilizada na década de 1970, Kleber leva o espectado em um túnel do tempo que, no final, revela como tantas tensões, fragilidades e, no meio delas, alegrias se mantém mesmo em épocas de turbulência.

