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Após inseminação artificial caseira, casais de mulheres lutam na Justiça para registrar filho com duas mães

Mulheres que recorrem à inseminação caseira, procedimento ainda sem regulamentação, alegam altos custos em clínica reprodutiva

Jorge Cosme

Publicado: 03/07/2025 às 16:42

Emília, Larissa e o filho./Foto: Cortesia

Emília, Larissa e o filho. (Foto: Cortesia)

A professora Raíssa, de 29 anos, não pôde acompanhar sua filha na sala do posto de saúde. Viu sua companheira Karina entrar sozinha com a criança enquanto ela era barrada pela enfermeira. "Isso machuca às vezes, sabe?", reflete. "Causa um impacto e você fica pensando: 'Poxa, mas eu também sou mãe'. Se eu tivesse a certidão dela, eu bateria o pé e diria: 'Não, eu vou entrar. Eu sou mãe'".

Moradoras do Cabo de Santo Agostinho, no Grande Recife, Raíssa e Karina tiveram uma criança por inseminação artificial caseira – método, sem regulamentação e mais barato, que é alvo de alertas de autoridades sanitárias por ser realizado fora dos serviços de saúde.

Por falta de lei específica para o procedimento, os cartórios não incluem o nome da mãe não biológica na certidão de nascimento da criança. O cenário obriga o casal a ir à Justiça para conseguir registrar a dupla maternidade.

Embora os juízes geralmente autorizem o pedido, a burocracia ainda provoca frustração e situações como a vivida pela professora no posto de saúde. "Por que um casal heteronormativo pode chegar lá no cartório e registrar a criança e eu não posso registrar o meu bebê no nome de duas mulheres?", questiona Raíssa.

“Minha filha vai fazer três meses e ela não existe para o Estado”, diz a professora. "Acredito que deveria ser lei que todo casal homoafetivo tivesse o direito de registrar seu bebê em cartório independentemente de que método fosse. Se eu comprovo para o Estado que tenho um relacionamento com aquela pessoa, com certidão de união estável, então o fruto daquela relação é nosso".

Inseminação caseira

Segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), a inseminação artificial caseira, em geral, é feita em ambientes domésticos ou hotéis, sem assistência profissional. O procedimento envolve a coleta de sêmen de um doador, que não pode ser remunerado, e a inseminação imediata com uso de seringa ou cateter.

“As mulheres que se submetem a esse tipo de procedimento na tentativa de engravidar devem estar cientes dos riscos envolvidos nesse tipo de prática”, alerta a agência.

A pedido dos casais, que temem estigmatização por causa do procedimento adotado, todos os nomes retratados nesta reportagem são fictícios. No caso de Raíssa e Karina, o pedido para registrar a dupla maternidade já tem decisão favorável no Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE), mas o trâmite ainda não foi concluído.

A solicitação foi feita em 30 de janeiro deste ano, quando Karina ainda estava com 30 semanas de gestação. Em 27 de maio, quase quatro meses depois, o juiz assinou a sentença que autoriza o registro. Agora, a família espera o processo transitar em julgado para finalmente poder tirar a documentação da filha, o que só deve ocorrer neste mês.

"Quando saiu o resultado, a gente ficou muito feliz. Está todo mundo ansioso, dizendo que, quando sair o registro mesmo, vamos pregar na nossa parede", afirma Raíssa.

Projeto conjunto e consentido

Decisão semelhante foi publicada em 14 de maio pela 1ª Vara Cível da Comarca de Serra Talhada, do TJPE, no Sertão de Pernambuco, autorizando Emília e Larissa, que são casadas desde 2023, a constarem como mães de Renato. Na sentença, o juiz destaca que o casal tem um projeto parental conjunto e consentido.

“A requerente [Emília] consentiu expressamente com a inseminação artificial heteróloga e participa ativamente da gestação e dos preparativos para a chegada da criança, exercendo de fato, desde já, o papel de mãe”, escreve o magistrado.

Emília e Larissa se conheceram pelo aplicativo Tinder em 2021. Com três meses, decidiram morar juntas. Elas se casaram no civil depois. “A gente sabia, como diz o ditado, que fomos feitas uma para outra”, diz Larissa, que relata ter começado a pensar sobre filhos desde que as duas passaram a dividir a mesma casa.

Ao procurar por inseminação artificial em clínica, o casal avaliou que o procedimento tinha alto custo. Uma clínica reprodutiva, localizada no Centro do Recife, cobra R$ 14 mil pelo procedimento.

Emília passou a participar de grupos no Facebook sobre inseminação caseira. No caso delas, o único gasto foi a gasolina da moto do doador, que morava em uma cidade próxima. “O doador está fazendo isso porque quer ajudar uma família. Não é para fins lucrativos”, afirma Larissa.

O pedido de registro civil da criança foi feito ainda durante a gestação. A decisão saiu 15 dias antes de o menino nascer. A certidão estava pronta quando Renato tinha dois dias de vida.

“Foi uma sensação indescritível. Eu sempre me senti muito mãe dele. Mas eu consegui me sentir muito mais quando vi os nossos nomes no registro. Agora tem um documento dizendo que eu sou mãe dele e acabou”, comemora Emília. “Eu não tinha falado para Larissa ainda, mas consegui me apaixonar por ela de novo. Eu já tentei imaginar o que seria maternidade, mas viver é totalmente diferente.”

Disparidade

A disparidade no andamento dos processos de registros é outro efeito da ausência de regulamentação. Enquanto o casal de Serra Talhada conseguiu uma decisão favorável ainda antes de a criança nascer, duas mulheres de Olinda, no Grande Recife, aguardam desde setembro pela decisão.

O pedido foi feito enquanto a genitora estava grávida, mas a criança nasceu em dezembro de 2024, sem que a sentença tivesse saído. "O Ministério Público já deu parecer favorável, já encontrei a juíza algumas vezes, mas eu fico aguardando e a sentença não vem", lamenta a advogada Dallyla Bezerra, do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), que atua no caso.

Também representante dos casais do Cabo de Santo Agostinho e de Serra Talhada, Dallyla já fez o pedido da dupla maternidade para 15 casais lésbicos em Pernambuco. "Ter esse registro é dar dignidade a essas mulheres, é respeito a todas as composições familiares, independente de como aquele bebê veio", defende a advogada.

"Eu noto procedimentos extremamente exagerados para aferir o elo entre bebê e a mãe. Por exemplo, eu cheguei com a certidão de casamento de duas mulheres em uma situação de inseminação caseira e o juiz me pediu um estudo social de caso, que é para adoção", diz. “Eu não estou falando de uma criança estranha que chegou para aquele casal. Eu estou falando de uma criança que foi sonhada, desejada, planejada durante aquela relação”.

Respaldo jurídico

Para a advogada, os casais e as crianças estariam submetidos a uma “omissão legislativa”. “Não há lei nem permitindo nem proibindo a inseminação caseira. Mas existe um bebê que foi planejado. Ele vai ficar sem registro, sem suporte?”, questiona.

Segundo ela, o IBDFAM já fez pedido para que os casais não precisassem mais acionar a Justiça, resolvendo a situação em cartório, à semelhança dos casais héteros. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), no entanto, recusou.

Em outubro de 2024, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) julgou um caso envolvendo inseminação artificial caseira. Na ocasião, a Corte reconheceu a presunção de maternidade da mãe não biológica.

Em seu voto, a ministra Nancy Andrighi, do STJ, avaliou que a inseminação caseira é “protegida pelo ordenamento jurídico brasileiro". A magistrada também considerou dispensável apresentar declaração de diretor de uma clínica de reprodução assistida, documento inexistente no método caseiro, para presumir a maternidade da mãe.

No processo, o IBDFAM defendeu que não haveria motivo para obrigar as mulheres a buscarem o Judiciário para conseguir registrar o filho com duas mães. A expectativa da instituição é que a reforma do Código Civil, em tramitação no Senado Federal, aborde a questão.

Na Corte Superior, o IBDFAM atuou como amicus curiae – uma parte interessada que presta informações ao Tribunal. A manifestação do órgão foi contundente.

"Impedir que seja lavrado o registro de nascimento devido à reprodução não ter ocorrido mediante intervenção médica, escancara injustificável limitação a um punhado de princípios constitucionais. Restringe o direito à liberdade e à igualdade. Afronta o respeito à autonomia da vontade e o livre exercício ao planejamento familiar dos pais. Além de excluir do filho o direito à própria identidade, desatende seu direito à convivência familiar, garantia constitucional que lhe é assegurada com absoluta prioridade", sustentou.

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