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GUERRA NO ORIENTE MÉDIO

Saques, caos e tiros: a ajuda não chega aos mais vulneráveis em Gaza

A situação humanitária dramática na Faixa de Gaza é consequência do bloqueio total à ajuda humanitária imposto por Israel de 2 de março até 19 de maio

AFP

Publicado: 03/08/2025 às 11:05

Faixa de Gaza /AFP

Faixa de Gaza (AFP)

Após quase 22 meses de guerra, a quantidade reduzida de alimentos que tem autorização para entrar em Gaza é rapidamente retirada por palestinos famintos que arriscam suas vidas sob tiros, saqueada por gangues ou desviada em meio ao caos, sem chegar aos que mais precisam da ajuda.

Graças a uma pausa parcial nos bombardeios anunciada recentemente por Israel, sob pressão internacional diante do risco de que a população morra de fome, a ajuda humanitária voltou a entrar no território sitiado, mas em quantidades consideradas insuficientes pelas organizações internacionais.

A situação humanitária dramática na Faixa de Gaza é consequência do bloqueio total à ajuda humanitária imposto por Israel de 2 de março até 19 de maio.

Todos os dias, os correspondentes da AFP são testemunhas de cenas terríveis em que multidões desesperadas avançam, muitas vezes colocando suas vidas em perigo, sobre veículos carregados de mantimentos ou na direção dos locais de aterrissagem da ajuda lançada por via aérea.

Na quinta-feira, em Al Zawayda, no centro da Faixa de Gaza, dezenas de palestinos desnutridos correram, aos empurrões, para disputar os pacotes após o lançamento de paletes de um avião.

"A fome levou as pessoas a se voltarem umas contra as outras. As pessoas lutam com facas", disse Amir Zaqot, que procurava ajuda, à AFP.

Para evitar distúrbios, os motoristas do Programa Mundial de Alimentos (PMA) têm instruções para interromper a viagem e permitir que as pessoas retirem diretamente a ajuda. Em vão.

"Uma roda de caminhão quase esmagou minha cabeça e me machuquei ao pegar o saco", disse um homem, com um saco de farinha sobre a cabeça, na região de Zikim, ao norte de Gaza.


"Nenhuma maneira de escapar"
Mohammad Abu Taha seguiu de madrugada para um ponto de distribuição perto de Rafah, no sul, para entrar na fila e reservar seu lugar: já havia "milhares de pessoas esperando, todos famintos, por um saco de farinha ou um pouco de arroz e lentilhas".

"De repente, ouvimos tiros (...) Nenhuma maneira de escapar. As pessoas começaram a correr, empurrando e caindo, crianças, mulheres, idosos", conta o homem de 42 anos. "A cena era trágica: sangue para todos os lados, feridos, mortos".

Quase 1.400 palestinos que aguardavam por ajuda morreram desde 27 de maio na Faixa de Gaza, "a maioria" em ações do Exército israelense, denunciou a ONU na sexta-feira.

As forças israelenses negam apontar contra os beneficiários da ajuda, alegando que são "tiros de advertência" quando as pessoas se aproximam muito de suas posições.

Há vários meses, organizações internacionais também denunciam os repetidos obstáculos impostos pelas autoridades israelenses, como negar permissões para atravessar as fronteiras, a lentidão nos trâmites alfandegários, a limitação dos pontos de acesso ou as rotas perigosas.

Na terça-feira da semana passada, em Zikim, "o Exército israelense modificou no último momento os planos de carga do PMA, misturando os carregamentos e obrigando o comboio a sair antes do previsto, sem a segurança adequada", afirmou um funcionário da ONU que pediu anonimato.

No sul, na passagem de fronteira de Kerem Shalom, "há duas rotas possíveis para chegar aos nossos armazéns (localizados no centro da Faixa de Gaza)", explica o dirigente de uma ONG, que também prefere permanecer sob anonimato.

"Uma é bastante segura, a outra é cenário frequente de combates e saques, e é esta que somos obrigados a seguir", afirma.


"Experimento darwiniano"
Parte da ajuda é saqueada por gangues — que frequentemente atacam diretamente os depósitos — e desviada para comerciantes que a revendem a preços exorbitantes, segundo várias fontes humanitárias e especialistas.

"É uma espécie de experimento darwiniano no qual apenas o mais forte sobrevive: os mais famintos não têm energia para correr atrás de um caminhão, esperar horas sob o sol ou brigar por um saco de farinha", afirma Muhammad Shehada, pesquisador convidado do Conselho Europeu das Relações Exteriores (ECFR).

"Estamos em um sistema ultracapitalista, onde comerciantes e gangues corruptas enviam crianças para arriscar suas vidas nos pontos de distribuição ou em saques. Virou uma nova profissão", explica, em Gaza, Jean-Guy Vataux, chefe de missão do Médicos Sem Fronteiras (MSF).

Os mantimentos, afirma, são revendidos depois para "aqueles que ainda podem pagar" nos mercados da Cidade de Gaza, onde o preço de um saco de farinha de 25 kg pode ultrapassar os 400 dólares (2.215 reais).

Israel acusou diversas vezes o Hamas de saquear a ajuda humanitária da ONU, que transportava a maior parte da ajuda desde o início da guerra, desencadeada pelo ataque do movimento islamista palestino em território israelense em outubro de 2023.

As acusações justificaram o bloqueio total imposto a Gaza entre março e maio, e depois a criação, no final de maio, da Fundação Humanitária de Gaza (GHF, na sigla em inglês), uma organização privada apoiado por Israel e Estados Unidos, que afirma ter se tornado desde então a principal fornecedora de ajuda, mas com o qual as demais organizações se recusam a trabalhar.

A GHF, no entanto, conta apenas com quatro pontos de distribuição para mais de dois milhões de habitantes, locais classificados como "armadilhas mortais" pela ONU.

"O Hamas (...) roubou a ajuda humanitária destinada à população de Gaza em várias ocasiões, atirando contra os palestinos", afirmou durante a semana o gabinete do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu.

Segundo comandantes militares israelenses citados pelo jornal The New York Times em 26 de julho, o Hamas conseguiu desviar parte da ajuda fornecida por algumas organizações, mas não há "nenhuma evidência" de que roube com frequência os alimentos da ONU.

Muito enfraquecido, o Hamas é integrado atualmente principalmente por "células autônomas descentralizadas que se escondem aqui e ali, em um túnel ou em uma casa destruída", afirma o pesquisador Muhammad Shehada.Tráfico de drogas
Alguns dirigentes humanitários afirmaram à AFP que, durante o cessar-fogo que precedeu o bloqueio de março, a polícia de Gaza - que tem vários membros do Hamas - participava na segurança dos comboios humanitários, mas que o atual vazio de poder favorece a insegurança e os saques.

"As agências, a ONU e as organizações humanitárias pediram de modo reiterado às autoridades israelenses para facilitar e proteger os comboios de ajuda e nossos depósitos", disse Bushra Khalidi, diretora da Oxfam em Gaza. "Os apelos foram amplamente ignorados".

Alguns analistas levantaram suspeitas de que o Exército israelense equipou redes criminosas em sua luta contra o Hamas e permitiu que prosperassem e saqueassem o território.

"O verdadeiro roubo de ajuda desde o início da guerra tem sido perpetrado por grupos criminosos, sob a supervisão das forças israelenses, e permitiram que operassem perto da passagem fronteiriça de Kerem Shalom", acusou no final de maio Jonathan Whittall, diretor do Escritório para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA) das Nações Unidas nos territórios palestinos.

Segundo a imprensa israelense e palestina, um grupo armado chamado Forças Populares, que reúne membros de uma tribo beduína liderada por Yasser Abu Shabab, opera nesta região do sul sob controle israelense.

O ECFR descreve Abu Shabab como o chefe de um "grupo criminoso (...) acusado de saquear os caminhões de ajuda" em Gaza. As autoridades israelenses reconheceram em junho que apoiavam e armavam clãs palestinos opostos ao Hamas, sem nomear diretamente o grupo liderado por Abu Shabab.

Segundo Michael Milshtein, do Centro Moshe Dayan de Tel Aviv, vários membros do grupo estão envolvidos em "todo tipo de atividades criminosas", incluindo o tráfico de drogas que transita pelo Sinai egípcio.

Outros grupos criminosos participam nos saques, atacam comboios, agridem e sequestram os motoristas de caminhões em outros setores da Faixa de Gaza, como em Khan Yunis e na periferia da Cidade de Gaza, denuncia Muhammad Shehada.

As afirmações são corroboradas por um agente humanitário, que acrescenta: "Nada disso pode ocorrer em Gaza sem a aprovação, ao menos tácita, do Exército israelense".

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