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Vagas de medicina para movimentos do campo: a inconstitucionalidade disfarçada de ação social

A Constituição Federal de 1988 estabelece que a administração pública deve obedecer aos princípios da legalidade, impessoalidade e moralidade

Leonardo Cruz

Publicado: 11/10/2025 às 09:45

16 pesquisadores contemplados com a chamada da CNPq irão desenvolver  projetos na UFPE
/Bruna Costa/Esp DP FOTO

16 pesquisadores contemplados com a chamada da CNPq irão desenvolver projetos na UFPE (Bruna Costa/Esp DP FOTO)

Nos últimos dias, o debate sobre a reserva de vagas em cursos de Medicina de universidades públicas para o público-alvo do Programa Nacional de Educação para Áreas de Reforma Agrária (PRONERA) reacendeu uma discussão fundamental sobre os limites constitucionais das ações afirmativas. O caso da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), com suas 80 vagas suplementares para o curso de Medicina, é emblemático: ele expõe a fronteira tênue entre a justiça social legítima e a instrumentalização política da máquina pública.

Sob o manto da inclusão e da política social, formalmente ancorado na Lei n 11.947/2009 e nos decretos regulamentadores do PRONERA, esconde-se uma manobra de favorecimento a grupos com nítido viés ideológico, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares (FETAPE) e demais atores sindicais ligados ao campo.


A Constituição Federal de 1988 estabelece que a administração pública deve obedecer aos princípios da legalidade, impessoalidade e moralidade (art. 37). A decisão judicial que defende o ato da UFPE apoia-se estritamente na legalidade formal do PRONERA, citando que o Decreto n 7.352/2010 autoriza convênios com universidades para a execução do programa e que o Decreto n 7.824/2012 permite a criação de vagas suplementares por meio de políticas específicas.


No entanto, a legalidade formal não convalida o desvio de finalidade material. A impessoalidade exige que o Estado trate a todos de forma igual ou, quando diferenciar, o faça com base em critérios objetivos e universais, como renda, raça ou origem escolar (conforme a Lei de Cotas, n 12.711/2012). Ao vincular as vagas ao "público-alvo do PRONERA" que é cooptado e organizado por movimentos sociais específicos — o critério de seleção deixa de ser a vulnerabilidade socioeconômica e passa a ser o vínculo associativo-ideológico.


O verdadeiro ato inconstitucional é o de utilizar a política pública do PRONERA como um biombo legal e elegante para institucionalizar o favoritismo político, oferecendo um acesso privilegiado a membros ou familiares de grupos que possuem um alinhamento político-sindical com os executores da política, ferindo, no mais alto grau, a moralidade administrativa.

A defesa das vagas do PRONERA argumenta a favor da isonomia material e da redução das desigualdades regionais e sociais (art. 3º, I e III, da CF). Alega-se que o processo seletivo diferenciado (análise curricular e redação) é necessário para corrigir o déficit histórico de qualidade do ensino básico para a população do campo.
No entanto, essa argumentação falha em dois pontos cruciais:
Primeiro, a luta pela redução de desigualdades deve ser combatida com o aprimoramento universal da educação básica e com a aplicação de políticas como o ENEM/SISU, que, apesar de suas falhas, são objetivamente impessoais e amparam a verdadeira inclusão por critérios como renda e escola pública.
Segundo o PRONERA não é um critério de pobreza, mas sim de afinidade. Ao garantir vagas em um curso de Medicina altamente concorrido, baseado em um vínculo que remete à organização política e não apenas à carência comprovada, o Estado está, nas palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello, transformando o princípio da igualdade em uma "contra igualdade" que perpetua vantagens.


Ainda mais uma pergunta que não pode deixar de ser feita: Se é para a população do campo, por qual motivo essas vagas não se voltam para o curso de agronomia? O STF já consolidou que ações afirmativas são válidas se fundadas em elementos fáticos concretos de desigualdade, mas não há precedente que ampare o benefício educacional com base em filiação a um movimento.


Ao endossar tal medida, a justiça corre o risco de validar o surgimento de um privilégio de casta, onde a porta de entrada para a carreira médica é determinada por quem "grita mais alto" ou "carrega a bandeira política", e não por quem preenche os requisitos impessoais do Estado de Direito.
A universidade pública possui um papel transformador, mas acima de tudo, um papel republicano. Ela pertence à coletividade e deve servir ao mérito, à ciência e à universalidade do saber, e não a bandeiras partidárias.


A formação médica exige rigor técnico, excelência e vocação pública. Transformar o ingresso no curso mais disputado do país em um instrumento de compensação política é corromper o sistema e colocar em risco a qualidade dos futuros profissionais que atenderão a própria população.

O verdadeiro avanço social não se conquista por meio de favoritismo, mas sim com o investimento em educação básica e com políticas de acesso que sejam amplas, legais e, acima de tudo, impessoais. O Estado não pode ter lado político-ideológico; ele deve ter lei, equidade e respeito ao mérito. A proposta de vagas suplementares para o PRONERA é, portanto, uma inconstitucionalidade disfarçada que deve ser rechaçada em nome dos princípios basilares da República.


Leonardo Cruz, advogado especialista em Gestão Pública (UPE) e Governança Corporativa, Conformidade e Risco (UFPE).

 

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