Bom de enterro
Violeta Arraes Gervaiseau, irmã de Miguel Arraes, conviveu com um câncer "terminal" durante uns três anos.
Publicado: 08/09/2025 às 08:45

Enterro (Freepik)
Violeta Arraes Gervaiseau, irmã de meu pai Miguel Arraes, conviveu com um câncer “terminal" durante uns três anos. De vez em quando fazia alguma disposição testamentária de seus objetos ou observação sobre sua morte.
Violeta havia sido, na época de estudante, uma das primeiras presidentes da Juventude Universitária Católica, companheira próxima de Cândido Mendes de Almeida, João Paulo de Almeida Magalhães, Célio Borja, gente do Centro D. Vital.
O Centro dividiu-se politicamente no princípio da década de 1950 no século passado: uma “esquerda”, próxima de Alceu Amoroso Lima, “Doutor Alceu” para os “iniciados” e Gustavo Corção, representando “a direita”. Violeta ficou com o primeiro, mas se apertada, concedia que Corção talvez fosse uma inteligência mais fascinante. Meu pai dizia que ela era a políticada família.
Um dia, perto de morrer, disse alto, algo assim para que a filha ouvisse: “Esse negócio de enterro, Cândido é que é bom para isso”. Há muito tempo que os dois não se viam ou se falavam.
Assim que morreu, Maria Benigna, minha prima, lembrou-se do comentário, ligou para Cândido e transmitiu-o literalmente. Ele murmurou alguma coisa, desligou o telefone e minutos depois chegou de táxi. Assumiu a condução dos trabalhos. Cuidou do velório no São João Batista, providenciou cremação, mandou dar uma mão de cal na capela do Cemitério do Caju, onde fica o crematório, e arranjou um padre de verdade, sem pretensões à filosofia ou à política, modesto e rezador.
Poucos convidados: a família, Bia Lessa que arrumou a sala no São João Batista. Caetano cantou uma música de Moreno sobre o Sertão, acompanhado de Turíbio Santos, os meus irmãos que moravam no Rio lá estavam, assim como Aloysio Nunes, senador que fora muito nosso amigo durante o exílio e que viera de São Paulo.
Eu falo. Digo entre outras coisas que ela me havia ensinado a rezar e passo a recitar a oração infantil que havia aprendido, recitei-a apenas em sua homenagem, uma vez que devoção não a tenho. Levanto os olhos e vejo Cândido Mendes de Almeida acompanhando-me com olhos cheios d’água, rezando de fato.
No final, pronunciou apenas algumas palavras, invocando a longa e frequentemente interrompida amizade pela distância ou simples dispersar da vida, a voz embargada.
A missa acabou e Cândido Mendes de Almeida desapareceu.
*José Almino de Alencar - sociólogo, escritor e ex-presidente da Fundação Casa de Rui Barbosa

